Condições insalubres, goteiras e sem forro: RS tem 65 mil moradias precárias; saiba como famílias sobrevivem
11/08/2025
(Foto: Reprodução) JA Repórter: o sonho da moradia digna
No bairro mais populoso do Rio Grande do Sul, o loteamento Vida Nova guarda histórias de resistência. É nesse local, na Restinga, Zona Sul de Porto Alegre, que vive o casal Greice e Juliano com os filhos, Davi, de quatro meses, e Diogo, de 10 anos.
Sem suporte do poder público, eles transformaram uma meia-água de madeira em casa de alvenaria, em busca de condições melhores para as crianças. As paredes foram erguidas com apoio de familiares e vizinhos, em uma verdadeira força-tarefa.
“Quando eu construí essa casa, comecei assim: ajuda de um, ajuda do outro, minha irmã fez uma vaquinha na internet. Hoje estou nessa estrutura, porque recebi ajuda”, conta Greice.
Mesmo com tanto esforço, a habitação ainda é precária. Sem forro nem reboco, tem falhas de acabamento que fazem com que a água da chuva escorra para dentro dos dormitórios. Além disso, não há conforto térmico, ampliando os riscos à saúde no inverno.
Em busca de solução, voluntários de um projeto social que oferece serviços gratuitos de arquitetura na região contemplaram a família com a reforma de dois ambientes. “Essa é uma casa feita através de autoconstrução, com elétrica precária, sem piso, considerada inadequada para se viver, pois adoece as pessoas. Então, a gente conseguiu a reforma da cozinha e do banheiro, que são peças sanitárias importantes para a saúde”, explica a arquiteta Karol Rosa de Almeida, responsável pela obra.
Para os moradores, a iniciativa proporcionou um avanço que não seria possível sem a participação desses parceiros. Mas, embora eles não soubessem disso até pouco tempo atrás, existe um programa estadual, chamado Nenhuma Casa Sem Banheiro, que garante a construção de sanitários para a população em vulnerabilidade.
Para que ele entre em operação, a prefeitura precisa se cadastrar e, segundo o governo do Estado, em todo o Rio Grande do Sul, apenas 12% dos municípios aderiram. Porto Alegre, onde o casal reside, é uma das cidades que não participa do programa.
A prefeitura da Capital afirma que chegou a aderir ao Nenhuma Casa Sem Banheiro, mas não conseguiu colocar as ações em prática, em razão de dificuldades técnicas. Em vez deste, ainda conforme o Executivo, foi priorizada uma iniciativa municipal que garante melhorias para residências, iniciado esse ano, pela Zona Norte da cidade.
A Restinga é o bairro mais populoso do estado
Reprodução/RBS TV
Especialistas questionam gestão de programas habitacionais
Segundo o IBGE, 65 mil famílias vivem em moradias precárias no território gaúcho. Para a arquiteta urbanista Karla Moroso, esse número é reflexo da desigualdade social:
“Moradia ainda é uma necessidade com acesso via mercado. Você paga por esse lugar. E nem todo mundo tem condições de comprar aquilo que é o adequado. [Por isso] muitas pessoas moram muito mal, em lugares extremamente inadequados”.
A profissional defende a prática da arquitetura como instrumento de justiça social. “Ela tem um papel importantíssimo, inclusive, na prevenção de doenças, na construção de uma cidade melhor. Estou falando daquilo que é primordial para o desenvolvimento da vida, como o ar que a gente respira, o alimento, a água, o abrigo. Sem essas coisas, as pessoas não sobrevivem”, discorre ela.
Tiago Balem, professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Feevale, de Novo Hamburgo, concorda. E critica o atual modelo de construção de moradias populares.
“Em geral, o que tem sido feito são com grandes conjuntos habitacionais que segregam essa população. A desigualdade sócio-espacial acontece quando a gente coloca essas pessoas longe do trabalho, dos vizinhos, da rede de apoio. E isso causa um segundo problema para o Estado, que é levar infraestrutura, creches, água, esgoto, transporte para quem mora longe. Então, tem que construir habitações dentro da cidade”, sugere.
“A gente vê nos discursos e nos programas, ‘vamos produzir moradias’. Só que se a gente olha a habitação descolada da terra, a gente vai ver os empreendimentos habitacionais construídos em escala nas periferias urbanas. E sem todo um conjunto de outras políticas associadas, vira um problema também. Existem leis, temos muitas, mas fazer com que elas caminhem para uma materialidade é o nosso problema. Na hora de agregar nessa legislação quem faz, quanto vai custar, quem vai pagar, quem são os atores, qual é o arranjo que vamos fazer para isso funcionar, a gente para”, complementa Karla.
Para Balem, uma alternativa para reduzir o déficit habitacional é o sistema de retrofit, em que se restauram edifícios ociosos em áreas centrais das cidades para transformar em residenciais.
Em Porto Alegre já existem iniciativas a partir dessa lógica, viabilizadas por meio de parcerias público-privadas. Um exemplo mencionado por Karla é o Assentamento 20 de Novembro, no Centro Histórico. Trata-se de um prédio construído há mais de meio século para abrigar um hospital, mas que acabou abandonado. Até o fim do ano que vem, deve estar revitalizado e servindo como moradia digna para 40 famílias, com infraestrutura e espaço para empreendedorismo comunitário.
Atualmente, a Capital tem mais de 100 mil imóveis vazios, de acordo com o IBGE.
Realidade pós-enchente
Já em São Leopoldo, na região metropolitana, o aposentado José Renir Ferraz de Linhares vive em uma casa considerada inabitável após a cheia histórica de maio do ano passado. Sem alternativa, continua morando em condições insalubres com a esposa, na Vila Brás.
“Meus netinhos adoeceram por causa da umidade. Tive que tirar eles daqui”, lamenta ele, acrescentando que “o arquiteto da Secretaria Municipal da Habitação disse, em laudo, que a sugestão técnica é que a casa seja demolida, reconstruída e a família, realocada”.
Morador do mesmo endereço desde 1987, o aposentado relata que gosta do bairro e da vizinhança. Mas que, nesse momento, o melhor seria ter condições de ir para outro lugar.
“Vou pagar aluguel aonde? Se já estava pagando antes e tive que voltar para casa acampado, improvisado, porque não tinha como”, desabafa.
A prefeitura de São Leopoldo informou que encaminhou os laudos sobre as moradias da Vila Brás ao governo federal, solicitando a inclusão no programa Compra Assistida, e que aguarda a resposta para dar andamento a esse processo.
Família transformou meia-água de madeira em casa de alvenaria
Reprodução/RBS TV
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